Perfume ou algoritmo? O risco da pasteurização olfativa na era da IA
- João Diel
- 23 de jun.
- 2 min de leitura
A chegada da Inteligência Artificial (IA) ao universo da perfumaria é um dos movimentos mais marcantes da indústria nas últimas décadas. Grandes casas como Givaudan, Symrise e Firmenich já utilizam algoritmos sofisticados para acelerar a criação de fragrâncias, cruzando dados sensoriais, tendências de mercado e preferências emocionais dos consumidores. Ferramentas como Carto, Philyra e plataformas de biometria olfativa prometem o futuro: perfumes personalizados, design rápido e fórmulas matematicamente "perfeitas" (The Guardian, 2023; Business Insider, 2024).
Mas a que custo?
A promessa da IA é sedutora: redução de custos, agilidade no desenvolvimento, previsibilidade. Porém, o que se observa é a criação de fragrâncias que frequentemente obedecem a algoritmos de aceitação massiva, resultando em perfumes cada vez mais genéricos e emocionalmente esvaziados. Quando uma IA calcula o que "deve funcionar", ela prioriza o que é estatisticamente seguro — e não necessariamente o que é ousado, único ou profundamente memorável.
A Allure (2024) já descreveu a IA como "o ChatGPT da perfumaria", sugerindo uma padronização perigosa, onde fragrâncias se tornam variações mínimas dentro de um mesmo campo olfativo previsível. A criatividade artesanal, nesse cenário, corre o risco de ser apagada. Perfumes assinados por IA muitas vezes sequer reconhecem a mão humana que os ajusta, reduzindo o papel do perfumista a um operador de algoritmos. Isso não apenas esvazia a profissão, como também empurra o mercado para uma concentração de poder nas mãos de grandes corporações.
Além disso, há uma questão ética delicada: o uso de dados biométricos e emocionais. Projetos como os da YSL com leitura de ondas cerebrais soam futuristas, mas levantam preocupações importantes: quem controla esses dados? Como garantir que a personalização não seja apenas mais uma estratégia para capturar ainda mais o consumidor?
O discurso da sustentabilidade também precisa ser observado com cautela. Embora a IA facilite a criação de moléculas por fermentação e aproveitamento de resíduos, há o risco de greenwashing quando essas práticas não estão de fato comprometidas com redes locais e regenerativas.
O valor político do perfume artesanal
Enquanto a indústria corre atrás do perfume estatístico, o pequeno produtor e o perfumista artesanal continuam guardiões da diversidade olfativa. São eles que ainda criam com matérias-primas locais, ciclos longos de maturação e histórias que fogem do previsível. O artesão é livre para errar, experimentar e misturar instinto com memória — e é nesse espaço de liberdade que nasce a verdadeira magia do perfume.
O perfume artesanal não precisa competir com a IA em velocidade. Ele oferece algo que os algoritmos não conseguem entregar: profundidade emocional e vínculo afetivo. Ele cheira à vida vivida — não a um gráfico.
Em um mundo onde o cheiro pode ser calculado, o gesto manual e o tempo da natureza tornam-se, mais do que nunca, um ato de resistência.
Referências:
The Guardian. How AI and brain science are helping perfumiers create fragrances. 2023.
Business Insider. AI is helping fragrance companies unlock the sensational possibilities of smell. 2024.
Allure. The ChatGPT of Fragrance Has Arrived. 2024.
