Entre o Fogo e a Névoa: Místicos, Profetas e a Rebeldia Queer dos Aromas
- João Diel
- 7 de mai.
- 2 min de leitura
Queimar um incenso pode parecer um gesto simples. Um detalhe no cotidiano. Mas para quem vive à margem da norma — onde corpos são constantemente vigiados, onde afetos são cerceados, onde o gênero não é dado, mas construído — acender uma brasa é também um ato de presença. Um modo de afirmar: ainda estamos aqui.
Historicamente, os místicos, os profetas, os mágicos, os intuitivos sempre foram figuras liminares. Gente que atravessa fronteiras e desafia o que se espera do mundo. Por isso mesmo, também sempre foram alvos. A perseguição nunca foi só sobre práticas espirituais — foi sobre modos de viver que não se curvam. A normatividade cobra silêncio, previsibilidade e adequação. E aqueles que veem com outros olhos, que sentem de outras formas, que ousam nomear o invisível, são tratados como ameaça.
Hoje, a violência se refina. Vem disfarçada de “adequação”, de “bom senso”, de “profissionalismo”. Existe uma pressão constante para diluir o excesso, esconder o brilho, tornar-se mais aceitável. Menos incômodo. Menos mágico.
Mas a presença queer é, por si só, um campo magnético. Um lugar onde o sensível se expande, onde o saber não depende apenas de palavras, onde a intuição tem valor próprio. Há, nesse corpo dissidente, uma inteligência que não se explica pelas lógicas dominantes — e que não precisa pedir permissão para existir.
Trabalhar com aromas, com plantas, com fumaça, não é apenas criar perfumes ou preparar ambientes. É articular outros modos de estar no mundo. Cada mistura pode ser um manifesto. Cada fragrância, um lembrete de que há outros caminhos possíveis. Há quem se perfume para se proteger. Há quem acenda um incenso para lembrar quem é. Há quem sinta, no ar, a memória dos que vieram antes.
A prática mágica, quando abraça a dissidência, não se resume a estética ou ritual. É também política. É espiritualidade sem obediência. É um saber que escapa das mãos do controle, e por isso mesmo segue sendo desautorizado, marginalizado, alvo de chacota ou apropriação.
Mas continua vivo.
Entre o fogo e a névoa, segue acesa a fagulha de quem nunca se rendeu. Uma espiritualidade queer — não no sentido institucional, mas como gesto de resistência. Uma forma de estar no mundo com todos os sentidos abertos. Com as dores e as delícias que isso traz. Com a recusa em ser domesticado.
Queimar um incenso é, muitas vezes, invocar o direito de respirar por inteiro.
